Ele

on domingo, 29 de junho de 2008

É impressionante sua organização, o quanto é assentado, aprumado, lânguido. É tratado com todo zelo, carinho e amor. Temo que muito mimo provoque uma sublevação. Vê-lo limpo, ajeitado, perfumado deixa os meus olhos felizes e saltitantes como uma criança que acaba de receber um presente, como um homem cuja visão, distraída, focaliza a sua companheira que o acompanhará no amor e na doença até a hora derradeira.

Que volúpia! A ordem mantida sobre ele é constante. Faz-me lembrar dos militares que, firmes, comandam, preparam e alinham suas tropas para a resolução de alguma missão. Contudo, são inferiores a majestosa presença dela, da mulher que sobre ele impõe rigidez severa e exige-se mais bela e objetiva. Dirige sisuda sua guarnição, diferente de qualquer oficial das forças armadas. Pode-se dizer até que não pertence a nenhuma destas. É diferente. A uniformização e a tez de seu subordinado possuem cor única: o amarelo. Dotado de polidez e brio inigualáveis, constatado na sua condição inerme, ele obedece-a sem retrucar, eternamente mudo. Apenas aqueles seres armados, ainda, na sua maioria, tradicionalmente machistas, não acatam as ordens e não aceitam a posto sobranceiro dessa comandante. Debalde relutam. Um e outro militar, assim como o grupamento amarelo, seguem voluntariamente as ordens emanadas com voz meiga, respeitada, branda.

Altaneira, ajeita as filas, as colunas, a frente, a retaguarda. Quando ele, tácita e involuntariamente, desobedece uma ordem, ela, silente, grita: “Não quero vê-lo deslocado, e sim bem colocado, bem claro feito o crepúsculo vespertino para que o fulgor chegue suave à visão de quem nos admira”. Ela não aceita o caos. É firme, é forte. Ela impera altiva de sua cadeira circundada de aura gentil e sóbria. Imponente, quase uma deusa, intocável, arruma cuidadosamente ele: seu belo, longo e loiro cabelo.

Mulher Querida

on domingo, 15 de junho de 2008

Sim, sinto sua falta. Contudo, não saberia responder o porquê de você senti a minha. Agora mesmo, penso em você. Fico imaginando sua rotina, seu percurso na estrada da vida, a sua família – se estão bem – e nos seus atuais amigos. Sinto um pouco de ciúme deles, pois estão constantemente perto de você, fazem-te chorar, sorrir, brigar e perdoar. Mas seria isso ciúme? Olhando no dicionário, vi na sua concepção o seguinte: zelos amorosos. Então não seria isso, já que não temos nenhuma relação mais íntima... amor está além das fronteiras do meu sentimento. Se não o é, o que seria? Não sei. Só sei que queria estar mais perto de você, ter diariamente o seu sorriso, alegria e seu abraço (tão confortante) ou, quem sabe, até mesmo um beijo... Beijo! Não, não pode, não quero te perder! Quero, apenas, possuir humildemente esse córrego que me perpassa violento e carinhosamente: você. Senti-la na mais pura essência do sincero, cheia de coragem, de garbo e rubor. Sei que sua lida diária tem perturbações, por isso o afago mútuo não deveria estar distante. Fico triste por não conseguir abdicar de minhas tarefas para ir te ver. Desculpe. Sempre pedindo desculpas. Desculpe. Fique ciente do carinho que adquiri por você e da minha preocupação com a sua mais preciosa fonte de energia e vigor: a saúde. Por isso, cuide-se...

Ato Nobre

on sábado, 7 de junho de 2008
Nesta prisão, cruel e virulenta, estava um garoto franzino, fraco, mentalmente molestado pelos carrascos que impunham a indolência. Estes carrascos eram diversos. Iam desde as novelas aos programas humorísticos sem humor.
O garoto implorava por ajuda. Pensava em alguns possíveis heróis que pudessem salvá-lo. Os livros paradidáticos, por exemplo, eram verdadeiros guerreiros que retiravam, do infernal cubículo gradeado pela ignorância, alguns poucos prisioneiros dispostos a encontrar o caminho da sabedoria.
Ao contrário desses, o garoto encontrava-se indisposto, numa sala em trevas, localizada num corredor sombrio, distante da vida, próxima da morte, da morte intelectual, do abismo da estupidez, do bestial. Precisava não de um herói material, mas de um amigo herói, um ser bravio e inteligente que lhe segurasse a mão e o retirasse daquela cela repleta de coisas perniciosas.
O amigo, então, iniciou movimentos cautos, previamente calculados, com o intuito de garantir o sucesso da operação desprovida de qualquer esforço físico. Passo a passo, ele ia, milagrosamente, provocando uma revolução nas mentes dos carrascos que, paulatinamente, transformavam-se em soldados na luta contra o perverso mandrião.
Em um ano, converteu a peia num local de alicerce embalsamado de ensinamentos úteis à formação e manutenção de uma cultura pautada no saber.
O corredor escuro iluminava-se na medida em que o amigo caminhava. O garoto, ao sentir a proximidade daquele, viu formar-se em seu interior um ambiente bucólico repleto de rosas perfumadas, de policromáticas borboletas e de saborosos livros. Antes, abraçado pela morte intelectual, agora, abraçado pela vida, aguarda, alegremente, ao lado do amigo, pela hora do inevitável embarque à nau que navegará pelo manso mar da eternidade.