Um momento liberto

on terça-feira, 15 de julho de 2008
Corria de um lado para outro com uma capa preta, segurando uma espada, fazendo movimentos de vaivém com ela, pulava, gritava. Mais uma vez fazia uma de suas magníficas interpretações de personagens, seja de filme, seja de desenho.

Sentado no sofá da sala, livro na mão, tentava se concentrar. Lia um parágrafo, mas logo esquecia o que tinha lido. Parou de ler. Decidiu, pois, observar discretamente Rivaldo em sua diversão. Olhava atentamente cada salto, cada giro, cada queda. Começou então a refletir sobre aquela atitude do irmão de golpear o ar, de falar com o ar. “Será que meu irmãozinho está endoidando?”. Não sabia. Pensou em falar ao garoto para ele deixar de fazer aquilo, mas hesitou. Não quis interromper o que, para Rivaldo, era uma brincadeira. Será que era só isso? Percebeu algo diferente naquele, algo parecia rodeá-lo, um mundo paralelo a esse em que vivemos. Sentiu-se intrigado.

O mais novo tinha doze anos. Idade na qual os seres já iniciam a busca do irreal, do fantástico, do inimaginável como forma de escapar das vilanias do real mesmo que imperceptivelmente. Fértil deveria ser o cenário, o prólogo, o enredo, o epílogo, os heróis, os vilões. Nesse universo desconhecido, podia tranqüilamente cravar macia a espada no peito do inimigo, atirar uma bala na cabeça do inimigo, suicidar-se, ressuscitar-se. Sabia que tudo era possível neste lugar. A curiosidade aguçava o devaneio de Bernardo, que despertou a vontade em saber o terreno onde Rivaldo encontrava-se. Perguntou: “Onde você está agora?”. Não teve sucesso. A resposta não veio. Estava distante. Cada vez mais o espaço metafísico o atraía. De súbito, lembrou-se de um amigo, o Lopes. Teve vida curta, contraiu uma intensa tristeza após perder a esposa. Encetou a construção de uma boneca com a qual, depois de pronta, passou a andar para cima e para baixo, quis preencher um vazio sem fronteiras. Rompeu a lembrança. Contudo, o imã da loucura o tragava com força máxima. A sensação de escapar da realidade tão caótica, tão suja e rotineira aproximava-se.

Era muito racional. Bernardo não aceitava nada que estivesse fora da realidade. Por isso iniciou uma luta com suas cismas. Sai, sai! Parou um instante, olhos cerrados. Não queria pensar. Entretanto, não adiantava. Quando pensava em não pensar, já pensava. Lembrava involuntariamente de lugares, de pessoas, de brigas, de brincadeiras, de zombarias. Às vezes, uma música vinha e martelava em sua cabeça sem conseguir parar. “Vai soldado, ataque-o, sua guarda está baixa, vai, vai!”. Bernardo assustou-se: “Pára Rivaldo, tá doido menino”. Este não ligava. “Takamura, não faça isso”. Agora sabia onde o irmão estava: era no Japão. Gostava da cultura deste país. A batalha contra o irreal deixava-o fraco, perdia aos poucos, estava prestes a render-se. Seu comportamento maduro de vinte anos resistia e procurava resguardar a enfraquecida razão. A infância reclamava liberdade, chorava, era sufocada dentro da sua inevitável prisão: a adolescência. Esta, porém, era forte e frágil. Bastaria uma ordem para a soltura.

Acordou caminhando no meio de um deserto, enfrentava a seca infernal, via Deus, via anjos. Iniciou uma trajetória difícil e lépida, sentia dores de felicidade. A sede apertava-lhe a garganta. Não agüentava mais. A viagem era torturante. Avistou um oásis. Enganou-se. Incontinenti, uma faca apareceu em sua frente. A razão implorava-lhe liberdade. A sua mão lentamente dirigia-se à faca, agarrou-a. Percebeu sua fragilidade no ambiente inóspito. Não conseguia criar outro melhor. Com sorriso exposto e os olhos úmidos, perfurou o coração. O sangue escorria lento, os olhos petrificavam-se. Morreu. A criança que tinha calado voltava a lacrimejar. Entrava agora num espaço em que Deus e anjos são intocáveis, invisíveis. Experimentava pela primeira vez o sabor da ressurreição ao provar um pouco do sangue, o “catchup”. "Pára Rivaldo, tá doido?!".

Flor de Lótus

on quinta-feira, 10 de julho de 2008
Lembro-me que, no primeiro ano, não tive um contato mais próximo de você devido a minha elevada e persistente timidez, que me manteve preso à visualização, apenas, sob a custódia de um amigo, já que voltara abatido de viagem triste e cansativa. Observava cada movimento seu, a maneira como balançava as pernas, o modo como caminhava, o sorriso, os lábios volvendo-se constantemente a soltar palavras. Estas eram carinhosamente recebidas pelos meus ouvidos, que vez por outra pedia para eu barrar o incessante e exaltado carretel de vocábulos.

Até então, era o que conhecia em você. Infelizmente, meu acanhamento bloqueou a porta que dava acesso a um corredor que me levaria a sua casa tão repleta de sentimentos. Na medida em que o tempo foi passando, o bloqueio foi enfraquecendo até que finalmente sucumbiu. O segundo ano foi o período de desbravamento do sombrio corredor. Por onde eu passava, iluminava com minhas sinceras brincadeiras. Pelo menos eu tentava, afinal, essa minha seriedade exacerbada... Fui descobrindo e ainda tento descobrir, aos poucos, o que a deixa feliz, o que a afligi; fui sentindo parte de suas ânsias, de suas angústias, de suas reflexões sobre a vida presente e futura. Corro, ainda hoje, incansavelmente o infindo corredor parcialmente clareado, que jamais chegará à casa, pois os seus sentimentos são nômades, inconstantes, indetermináveis.

Você, para mim, é uma flor de lótus, que nasce pura e imaculada nas primaveras orientais em águas lodosas. A sua beleza é grandiosa e será guardada cuidadosamente na minha estufa de emoções. Ter conhecido você foi, é e sempre será de elevado regozijo. Tudo o que vivi, vivo e viverei com você será majestosamente segurado e selado por mim em meu humilde baú de memórias.

Ele

on domingo, 29 de junho de 2008

É impressionante sua organização, o quanto é assentado, aprumado, lânguido. É tratado com todo zelo, carinho e amor. Temo que muito mimo provoque uma sublevação. Vê-lo limpo, ajeitado, perfumado deixa os meus olhos felizes e saltitantes como uma criança que acaba de receber um presente, como um homem cuja visão, distraída, focaliza a sua companheira que o acompanhará no amor e na doença até a hora derradeira.

Que volúpia! A ordem mantida sobre ele é constante. Faz-me lembrar dos militares que, firmes, comandam, preparam e alinham suas tropas para a resolução de alguma missão. Contudo, são inferiores a majestosa presença dela, da mulher que sobre ele impõe rigidez severa e exige-se mais bela e objetiva. Dirige sisuda sua guarnição, diferente de qualquer oficial das forças armadas. Pode-se dizer até que não pertence a nenhuma destas. É diferente. A uniformização e a tez de seu subordinado possuem cor única: o amarelo. Dotado de polidez e brio inigualáveis, constatado na sua condição inerme, ele obedece-a sem retrucar, eternamente mudo. Apenas aqueles seres armados, ainda, na sua maioria, tradicionalmente machistas, não acatam as ordens e não aceitam a posto sobranceiro dessa comandante. Debalde relutam. Um e outro militar, assim como o grupamento amarelo, seguem voluntariamente as ordens emanadas com voz meiga, respeitada, branda.

Altaneira, ajeita as filas, as colunas, a frente, a retaguarda. Quando ele, tácita e involuntariamente, desobedece uma ordem, ela, silente, grita: “Não quero vê-lo deslocado, e sim bem colocado, bem claro feito o crepúsculo vespertino para que o fulgor chegue suave à visão de quem nos admira”. Ela não aceita o caos. É firme, é forte. Ela impera altiva de sua cadeira circundada de aura gentil e sóbria. Imponente, quase uma deusa, intocável, arruma cuidadosamente ele: seu belo, longo e loiro cabelo.

Mulher Querida

on domingo, 15 de junho de 2008

Sim, sinto sua falta. Contudo, não saberia responder o porquê de você senti a minha. Agora mesmo, penso em você. Fico imaginando sua rotina, seu percurso na estrada da vida, a sua família – se estão bem – e nos seus atuais amigos. Sinto um pouco de ciúme deles, pois estão constantemente perto de você, fazem-te chorar, sorrir, brigar e perdoar. Mas seria isso ciúme? Olhando no dicionário, vi na sua concepção o seguinte: zelos amorosos. Então não seria isso, já que não temos nenhuma relação mais íntima... amor está além das fronteiras do meu sentimento. Se não o é, o que seria? Não sei. Só sei que queria estar mais perto de você, ter diariamente o seu sorriso, alegria e seu abraço (tão confortante) ou, quem sabe, até mesmo um beijo... Beijo! Não, não pode, não quero te perder! Quero, apenas, possuir humildemente esse córrego que me perpassa violento e carinhosamente: você. Senti-la na mais pura essência do sincero, cheia de coragem, de garbo e rubor. Sei que sua lida diária tem perturbações, por isso o afago mútuo não deveria estar distante. Fico triste por não conseguir abdicar de minhas tarefas para ir te ver. Desculpe. Sempre pedindo desculpas. Desculpe. Fique ciente do carinho que adquiri por você e da minha preocupação com a sua mais preciosa fonte de energia e vigor: a saúde. Por isso, cuide-se...

Ato Nobre

on sábado, 7 de junho de 2008
Nesta prisão, cruel e virulenta, estava um garoto franzino, fraco, mentalmente molestado pelos carrascos que impunham a indolência. Estes carrascos eram diversos. Iam desde as novelas aos programas humorísticos sem humor.
O garoto implorava por ajuda. Pensava em alguns possíveis heróis que pudessem salvá-lo. Os livros paradidáticos, por exemplo, eram verdadeiros guerreiros que retiravam, do infernal cubículo gradeado pela ignorância, alguns poucos prisioneiros dispostos a encontrar o caminho da sabedoria.
Ao contrário desses, o garoto encontrava-se indisposto, numa sala em trevas, localizada num corredor sombrio, distante da vida, próxima da morte, da morte intelectual, do abismo da estupidez, do bestial. Precisava não de um herói material, mas de um amigo herói, um ser bravio e inteligente que lhe segurasse a mão e o retirasse daquela cela repleta de coisas perniciosas.
O amigo, então, iniciou movimentos cautos, previamente calculados, com o intuito de garantir o sucesso da operação desprovida de qualquer esforço físico. Passo a passo, ele ia, milagrosamente, provocando uma revolução nas mentes dos carrascos que, paulatinamente, transformavam-se em soldados na luta contra o perverso mandrião.
Em um ano, converteu a peia num local de alicerce embalsamado de ensinamentos úteis à formação e manutenção de uma cultura pautada no saber.
O corredor escuro iluminava-se na medida em que o amigo caminhava. O garoto, ao sentir a proximidade daquele, viu formar-se em seu interior um ambiente bucólico repleto de rosas perfumadas, de policromáticas borboletas e de saborosos livros. Antes, abraçado pela morte intelectual, agora, abraçado pela vida, aguarda, alegremente, ao lado do amigo, pela hora do inevitável embarque à nau que navegará pelo manso mar da eternidade.

Utopia?

on sábado, 22 de março de 2008
Nas horas mais serenas, penso estar a flutuar sobre lindos campos rosados e perfumados. Ledo engano. Ao despertar, deparo-me com este cenário citadino cheio de prédios, cheio de carros, poluentes, desigualdades, mortes e, no meio dessa bagunça toda, nascimentos. A próxima geração, caso ninguém faça algo para minimizar essa degradação que pouco a pouco domina quase por completo a humanidade, viverá num ambiente hostil a sua saúde física e espiritual. Lutemos para que o nosso Mundo melhore, para que nossas crianças não venham a chorar, e sim sorrir. Não deixemos a elas a carga fétida produzida pelos nossos antepassados e por nós mesmos, mas sim um caminho pelo qual possam caminhar seguras e felizes.

Mãos de Deus

on domingo, 10 de fevereiro de 2008
Pensava, há uns dias, sobre a Morte. O que é, ou melhor, quem é a Morte? Após alguns minutos de cisma, concluí, trôpego, que ela é uma criada ou um criado de Deus. Hum, espere aí... Não, analisando melhor, acredito que não seja um subordinado, um servo... Ela pode ser considerada uma mãe sem filhos legítimos, uma vez que ao ceifar milhares de pessoas, termina por adotar a vida. Talvez, inveje o prazer que as pessoas têm de estar em Terra; inveje o "estar vivo" dos indivíduos. Não, não pode existir criatura tão invejosa. Quem sabe, não seja, somente, um trabalho seu de todos os dias, de todas as horas e minutos. É algo mais importante, um objetivo que apenas ela é capaz de cumprir, uma resposta aos anseios, ao desespero, à tristeza, à alegria e aos diversos sentimentos que os homens adquirem ao mergulharem, desde o nascimento, na dinâmica social. Acredito, quer dizer, pode ser que ela esteja apenas querendo cessar as dores, os sofrimentos, castigar os inescrupulosos, o homem vil... Servo? Não. Subordinada? Muito menos. A Morte, nada mais é, resumindo este pequeno devaneio, as Mãos de Deus. É, as Mãos de Deus.

Virada de ano

on domingo, 6 de janeiro de 2008

Jorginho era o nome dele. Dele quem? Do estudante de cursinho que já estava de férias há um mês e a única coisa que fazia era ler e falar com os amigos pelo computador. Dia 31 de dezembro, véspera da virada de ano, estava ele a digitar no "msn" algumas palavras para com seus amigos. Poucos se encontravam conectados, pois eles deveriam estar divertindo-se em algum lugar com a família, estar na beira-mar aguardando no meio de tanta gente os fogos de artifício que iluminariam o céu enegrecido pela noite.

O tédio pouco a pouco tomava conta de seu corpo, de sua mente, e uma vontade muito grande de sair naquele dia corria em suas veias. O seu coração bombeava litros e mais litros de sangue que faziam seu corpo agitar por dentro. Seus órgãos internos passaram a produzir substâncias até então desconhecidas por muitos cientistas renomados em todo o Mundo. A libidinagem, a esperteza, que não era característico dele, e a vontade de sair do ócio eram uma das substâncias. Sentado em frente ao computador, cabisbaixo, refletia sobre os possíveis lugares para onde poderia ir. Eram vários. Não conseguiu sozinho decidir-se e então resolveu ligar para alguns amigos. A maioria destes estava com o celular desligado, e os que atendiam localizavam-se em casa com a família. Após muito tempo, lembrou de um amigo próximo, que morava perto de sua casa. Foi só lembrar. Escutou batidas na porta e ao abri-la se deparou com ele.

Todo ano, Emanuel dirigia-se até a casa de Jorginho para rangar a deliciosa comida (era a única do ano) preparada pela madrasta. Havia bolo com cobertura de leite condensado salpicado com alguns grânulos adocicados e coloridos, torta de frango, entre outras coisas. Aproveitando a presença do amigo, Jorginho fez-lhe a proposta de sair para algum canto antes da zero hora. O amigo, liso feito uma enguia, disse que não dava, frustrando Jorginho.

- Cara, agente pode descer – disse Emanuel pouco animado

- Mas quem ta lá em baixo?

- Tem uma galera aí...não ta lá essas coisas, mas da pra tentar se divertir – titubeou manozo, como era chamado carinhosamente por Jorge.

- A minha vontade era de sair mesmo, mah!

- Mas agente vai sair pô, vai não?

- Vai, mas não é de verdade... Ah! tá certo, eu vou.

Arrumou-se aprimoradamente, parecia que ia para uma grande festa repleta de pessoas, principalmente mulheres. No entanto, ao contrário do que imaginava, viu-se diante de uma quantidade irrisória de condôminos, maioria homem, e as mulheres que tinham eram velhas cansadas e casadas. Não saiu de casa, e sim do apartamento. Acabou que ficou sem fazer nada. Quer dizer. Ficou conversando com manozo no salão de festas: a garagem desocupada.

Deixe a preguiça de lado!

on sexta-feira, 4 de janeiro de 2008
Demorei bastante para me decidir se fazia ou não este blog. Não me sentia suficientemente capaz de publicar textos, pois tinha medo de que eles não servissem para nada, de que eles não agradassem a ninguém. Porém, depois de muito relutar, percebi que eu não deveria ter ânsia alguma com relação a isso, já que meu objetivo é adquirir conhecimento o suficiente para me erguer na vida de maneira positiva. Àqueles temerosos em ter seus textos lidos, façam como eu neste exato momento, deixem a vontade, a prática, a procura de aprendizado dominar vocês, pois só assim poderão escrever o quanto quiser.